Violência nunca é sobre amor: dissecando a carta do assassino de Campinas
Falar de amor é sempre um desafio. O amor é muito sobre nós e um pouco sobre o outro. É sobre o que o outro desperta em nós, em como nos sentimos ao lado da outra pessoa, em o que acreditamos que a gente merece e como a gente merece e quer ser visto. Amor é sobre o que já vivemos e sobre o que queremos viver. Cada um teve um tipo de experiências na vida e nem todos nós conseguimos olhar pra dentro com sinceridade suficiente pra entender como essas coisas influenciam na maneira que nos relacionamos com os outros.
Mas falar sobre o que NÃO é amor é simples.
Dominação não é amor.
Poder não é amor.
Controle não é amor.
Dependência não é amor.
Cobrança não é amor.
Violência não é amor.
Assassinato não é amor.
2017 começou com uma notícia de embrulhar o estômago: um homem matou a ex-mulher, o próprio filho e mais 10 pessoas em uma festa de réveillon em Campinas. A imprensa, irresponsável como de costume, divulgou a carta do assassino sem problematizar tudo o que está escrito ali. O discurso de ódio já está sendo aplaudido e como disserem em tweets e posts de Facebook: nada ali é novo, tudo já foi lido diversas vezes nas redes sociais e recebeu diversos likes.
Eu e você já lemos aquele discurso. Já lemos milhares de vezes feminicídio ser chamado de crime passional — na página Não Foi Ciúme você pode ter uma ideia de quantas vezes isso acontece -, já vimos diversas histórias de mulheres violentadas que são apontadas como um problema quando afastam o filho do genitor — vale lembrar que gerar e exercer a paternidade são coisas diferentes -, já vimos milhares de homens justificarem sua violência e descontrole no comportamento de outras pessoas.
Mas nem todo mundo conseguiu olhar por esse ângulo. Então resolvi apontar diversos absurdos da carta e destacar ponto a ponto quais os problemas ali. O estômago vai embrulhar, mas é só respirando fundo e apontando as coisas com clareza que vamos conseguir tornar esse e outros assuntos óbvios pra todo mundo.
“Não tenho medo de morrer ou ficar preso, na verdade já estou preso na angustia da injustiça, além do que eu preso, vou ter 3 alimentações completas, banho de sol, salário, não precisarei acordar cedo pra ir trabalhar, vou ter representantes dos direito humanos puxando meu saco, tbm não vou perder 5 meses do meu salário em impostos”
Discurso básico de quem acha que bandido bom é bandido morto sem notar que apoiar justiça com as próprias mãos ou violência contra pessoas que cometeram erros é tão criminoso quanto — talvez até mais, já que assassinato é um tipo de crime pior do que roubar mercado ou cometer atos de vandalismo, por exemplo.
Nesse mesmo discurso existe a falsa ideia de que a vida no cárcere equivale a férias em um spa e que as pessoas que lutam por Direitos Humanos querem que todos os pecados sejam perdoados e todo mundo cante músicas belas em uma ciranda. O que os “representantes dos direito humanos” querem é que as pessoas não sejam desumanizadas.
Mas o ponto principal nem é esse, mas a justificativa que vem logo no início: “não tenho medo de morrer ou ficar preso, na verdade já estou preso na angustia da injustiça”. Quantas vezes você já se sentiu injustiçado? Quantas vezes eu já me senti assim? Alguma dessas vezes você matou alguém? Quando você sentiu que não ia mais conseguir lidar com a dor você buscou ajuda ou atirou em pessoas? Nós dois entendemos o ponto aqui, não?
“Morto tbm já estou, pq não posso ficar contigo, ver vc crescer, desfrutar a vida contigo por causa de um sistema feminista e umas loucas. Filho tenha certeza que não será só nos dois quem vamos nos foder, vou levar o máximo de pessoas daquela família comigo, pra isso não acontecer mais com outro trabalhador honesto. Agora vão me chamar de louco, más quem é louco? Eu quem quero justiça ou ela que queria o filho só pra ela? Que ela fizesse inseminação artificial ou fosse trepar com um bandido que não gosta de filho”
Um pouco mais de justificativa e a divisão da culpa com o filho — “não será só nos dois quem vamos nos foder” -, como se fosse também escolha da criança passar por tudo aquilo. Não sabemos como foi o relacionamento e nem como era a relação entre os pais sobre o filho, mas quem é pai ou mãe sabe que você NUNCA pensaria em matar seu filho porque não pode ter o que você, adulto, acha que merece.
O sistema feminista e “umas loucas” que ele fala é o mesmo que impede que mulheres prestem queixa contra agressores, que sejam culpadas pelas violências que sofrem e que precisou criar um termo para identificar crimes motivados por gênero, o feminicídio — o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking de feminicídio entre 84 países, de acordo com a ONU Mulheres.
O argumento de que a mulher queria o filho apenas para ela é utilizado em diversos casos como prova de que suas denúncias contra o parceiro não são verdadeiras, porém ele não prova nada. Muitas mães não querem deixar que seus filhos tenham contato com homens que as agrediram nos relacionamentos. Você diria que elas estão exagerando?
“No Brasil, crianças adquirem microcefalia e morrem por corrupção, homens babacas morrem e matam por futebol, policiais e bombeiros morrem dignamente pela profissão, jovens do bem (dois sexos) morrem por celulares, tênis, selfies e por ídolos, jornalistas morrem pelo amor à profissão, muitas pessoas pobres morrem no chão de hospitais para manter políticos na riqueza e poder!”
Antes de tudo, microcefalia não é algo adquirido por causa da corrupção, mas pela falta de interesse do governo em olhar para um problema que não se concentra no Sul/Sudeste, que atinge, principalmente, mulheres pobres e que tem a resolução intimamente ligada ao aborto legal. O trabalho da antropóloga e pesquisadora da Anis — Instituto de Bioética, Debora Diniz, é focado nisso e traz dados incríveis.
“Eu morro por justiça, dignidade, honra e pelo meu direito de ser pai! Na verdade somos todos loucos, depende da necessidade dela aflorar!”
Existe um grupo organizado de homens que lutam contra o feminismo e a conquista de direitos pelas mulheres chamado masculinistas. A professora de Literatura em Língua Inglesa da Universidade Federal do Ceará, Lola Aronovich, fala bastante sobre o assunto — você pode ler aqui e aqui -, mas o resumo é simples: os caras acreditam que as mulheres já têm demais e que agora eles precisam barrar qualquer avanço, pois eles estariam ferindo a dignidade e a honra masculinas.
Esse discurso de “morro por justiça, dignidade, honra e pelo meu direito de ser pai” se assemelha fortemente ao de assassinos ao redor do mundo. É a tentativa de criar um mártir, um exemplo a ser seguido. O perigo disso é imenso e a chance desse tipo de ideia e comportamento de alastrar é imensa — e não sou eu quem diz, são psiquiatras do mundo todo que acreditam que esse tipo de divulgação e fama pode incentivar outras pessoas.
“A vadia foi ardilosa e inspirou outras vadias a fazer o mesmo com os filhos, agora os pais quem irão se inspirar e acabar com as famílias das vadias. As mulheres sim tem medo de morrer com pouca idade. Aproveitando, peço aos amigos que sabem da minha descrença, que não rezem e por mim, se fazerem orações façam por meu filho ele sim irá precisar! Quero ser enterrado com a cabeça para baixo se garante que assim posso ir pro inferno buscar a velha vadia (que era até ministra de comunhão na igreja) que morreu antes da hora. Demorei pra matar ela pq me apaixonei por um anjo lindo!”
Aqui começa a construção do estereótipo da vadia. Já escrevi sobre isso mais de uma vez — você pode ler aqui -, mas a ideia é que qualquer mulher que não aja da maneira esperada e desejada por um homem será, em algum momento, chamada por esse nome.
“Ela não merece ser chamada de mãe, más infelizmente muitas vadias fazem de tudo que é errado para distanciar os filhos dos pais e elas conseguem, pois as leis deste paizeco são para os bandidos e bandidas. A justiça brasileira é igual ao lewandowski, (um marginal que limpou a bunda com a constituição no dia que tirou outra vadia do poder) um lixo! Se os presidentes do país são bandidos, quem será por nós?”
Quando criticamos a posição política “contra tudo que está aí” é sobre isso que estamos falando: as pessoas vão ligando de maneira desconexa tudo o que as incomoda, colocam no mesmo balaio e acreditam que a única verdade é a que elas carregam. Política e relações interpessoais estão ligadas? Claro, tudo está ligado à política, mas não dessa maneira direta. Se existem leis e as pessoas se encaixam nas contravenções nelas descritas o problema não é exatamente da política, é?
A alienação parental é outro tema que precisa ser discutido por causa desse trecho. Existem mulheres e homens que mantém os filhos longe do contato com os pais ou mães? Sim. Existem maneiras diversas da alienação parental além de não permitir contato físico? Sim. Casos de alienação parental já podem ser discutidos com ajuda de advogados e da justiça. Matar o próprio filho, a ex-mulher e sua família não é uma maneira de resolver a questão.
O ponto é: não importa tudo de errado que pode acontecer em um relacionamento ou entre um casal, assassinato não resolve, muito menos quando não estamos falando de legítima defesa.
“Filho, não sou machista e não tenho raiva das mulheres (essas de boa índole, eu amo de coração, tanto é que me apaixonei por uma mulher maravilhosa, a Kátia) tenho raiva das vadias que se proliferam e muito a cada dia se beneficiando da lei vadia da penha! Não posso dizer que todas as mulheres são vadias! Más todas as mulheres sabem do que as vadias são capazes de fazer!”
Mais uma vez o estereotipo da vadia. “Não tenho raiva das mulheres (essas de boa índole, eu amo de coração)”, diz ele. O que a gente pode ler é: aceito as mulheres que agem de acordo com o que eu acredito ser certo. Nada aqui fala sobre respeitar mulheres enquanto pessoas, mas sobre como ele se apaixonou por uma mulher que está, por enquanto, dentro do padrão que ele desenhou — será que a ex não esteve um dia nesse mesmo lugar?
O apontamento da Lei Maria da Penha e a agressão à mulher que dá nome à lei só comprovam a relação de ódio que ele tem com as mulheres. Para saber mais sobre a lei, que tem o objetivo de reeducar os homens agressores, você pode assistir esse mini documentário de 12 minutos, ou ler sobre a Maria da Penha, que foi a homenageada de 2016 do Prêmio Claudia.
“Filho te amo muito e agora vou vingar o mal que ela nos fez! Principalmente a vc! Sei o qto ela te fez chorar em não deixar vc ficar comigo qdo eu ia te visitar. Saiba que sempre te amarei! Toda mulher tem medo de morrer nova, ela irá por minhas mãos!”
Amor não pede vingança. Quem ama luta para ter os amados por perto, não violenta, agride ou mata. Em 2013, ano dos dados mais recentes, 2.875 foram mortas e um número alto delas teve sua morte noticiada como “por amor”, seja ele não correspondido, traído ou ameaçado, ou por vingança.
“(…) eu ia matar as vadias (eu já tinha a arma e raspei a numeração pra não prejudicar quem me vendeu, ela precisava de dinheiro). Família de policial morto não recebe tantos benefícios com a família de presos. Cadê os ordinários dos direitos humanos? Estão sendo presos por ajudar bandidos né? Paizeco de bosta. Sei que me achava um frouxo em não dar uns tapas na cara dela, más eu não podia te dizer as minhas pretensões em acabar com ela! Tinha que ser no momento certo. Quero pegar o máximo de vadias da família juntas”
A gente tá falando de um crime premeditado. Quando um atirador entra em um cinema ou escola, por exemplo, ninguém quer saber quais são os motivos para justificar o que aconteceu. Porém, quando mulheres são mortas em crimes premeditados sempre há quem tente colocar a culpa na vítima. “Ela o acusou de agressão”. “Ela não o deixou conviver com o filho”. “Ela não foi boa pra ele”. Não foi ela que pegou a arma e matou pessoas. Ela não o violentou e o obrigou a se defender tirando sua vida como consequência. Ele pensou em cada detalhe do crime — numeração raspada, várias pessoas juntas ao mesmo tempo, um dia marcante.
“A injustiça campineira me condenou por algo que não fiz! Espero que eles sejam punidos de alguma forma. Chega!! Ela tem que pagar pelo que fez”
De acordo com a pesquisa “Percepções dos homens sobre a violência doméstica e estereótipo de gênero” do Instituto Avon / Data Folha mais de 40% dos brasileiros conhecem ao menos um homem que já foi violento com sua parceira, mas só 16% dos que responderam a pesquisa assumem já ter sido violentos. Além disso, 56% dos homens admitiram já ter xingado a companheira, humilhá-la em público ou obrigá-la a ter relações sexuais sem vontade sem saber que isso pode ser considerado violência.
Esses números colocam a palavra injustiça ao lado de outra: desinformação. Vivemos em uma sociedade machista, que coloca o homem em um papel de poder e a mulher em um de subserviência. Esses papeis carregam com eles cargas de violência e abusos que muitas vezes são encarados como acontecimentos naturais de um relacionamento.
Enquanto todos esses pontos não forem discutidos à exaustão, enquanto as escolas não ensinarem quais atitudes se encaixam na definição de violência, enquanto a imprensa continuar apenas dando visibilidade a discursos sem pedir que especialistas os traduzam não vamos sair do lugar em que estamos.
E esse lugar é cheio de sangue, dor e tristeza justificadas por falsas injustiças, amor e honra.
Fonte: https://medium.com/polemiquinhas-com-a-carol-patrocinio/violencia-nunca-e-sobre-amor-dissecando-carta-assassino-campinas-a2daf10adfee#.u9rlmc2u0