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Denúncia de feminicídio oferecida em São Paulo em caso de vítima mulher transexual

Atualizado em 10/10/2016 00:00

IP 0001798-78.2016.8.26.0052 (CI 355/16)

Meritíssima Juíza,


  1. Ofereço DENÚNCIA em separado contra LUIZ HENRIQUE MARCONDES DOS SANTOS.

  2. Requeiro, ainda, a vinda aos autos da folha de antecedentes do denunciado, bem como dos processos que dela eventualmente constarem.

  3. Requeiro, além disso, a juntada da cópia dos laudos anexos e que se cobre a vinda das vias originais.

  4. Requeiro, por outro lado, oficie-se à Polícia Militar solicitando o encaminhamento de cópia do BOPM referente aos fatos aqui noticiados.

  5. Âncora Por fim, cumpre observar que a qualificadora do feminicídio, prevista no artigo 121, §2º, inciso VI, §2º-A, inciso I do Código Penal, é norma penal que necessita de complementação pela legislação especifica, qual seja a Lei n.º 11.340/06 (Lei Maria da Penha), pois o conceito de violência doméstica nela está previsto. Assim, entende-se por violência doméstica qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, ocorrida dentro do ambiente doméstico, familiar ou de sua intimidade, podendo ser violência física, psicológica, sexual, patrimonial, moral e tantas outras. Portanto, não há que se questionar o caráter de violência doméstica empregada pelo denunciado à vítima, visto que eram companheiros e coabitavam há 10 anos.

Já no que tange ao conceito da expressão “condição de sexo feminino”, constante nesta qualificadora, também se encontra delineado no caso, senão vejamos.

Durante sua tramitação no Congresso Nacional, retirou-se do Projeto de Lei para implementação desta qualificadora o termo “gênero” para constar “sexo feminino”, mas doutrinadores como Valéria Scarance Fernandes1 ensinam que a alteração não tirou o seu caráter de proteção de gênero. Já Ela Castilho2 acrescenta que “(...) a condição de sexo feminino é uma construção social tal como o papel atribuído às mulheres na sociedade e que constitui o chamado gênero feminino”. Do mesmo modo, Maria Berenice Dias3, Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini4, bem como Adriana Mello5 entendem que qualquer pessoa ligada ao gênero feminino, inclusive transexuais, podem ser vítimas de violência de gênero e, portanto, de feminicídio.

Inegavelmente, a vítima se comportava como mulher, até mesmo com nome social de conhecimento notório, mantendo relação amorosa com um homem, utilizando vestes e cabelos femininos, além de já ter realizado procedimentos cirúrgicos para adequação do corpo, como a manipulação de silicone nos seios (laudo necroscópico anexado em cópia).

Deste modo, evidente que a vítima sofreu violência de gênero, sofrendo agressões por ser mulher, estando em situação de vulnerabilidade em relação ao seu agressor, o que se coaduna com todos os requistos e conceitos para verificação deste tipo de violência.

Por fim, cumpre ressaltar que juízes e tribunais têm a Lei Maria da Penha a travestis e transexuais:

“Desta forma, apesar da inexistência de legislação, de jurisprudência e da doutrina ser bastante divergente na possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha ao transexual que procedeu ou não à retificação de seu nome no registro civil, ao meu ver tais omissões e visões dicotômicas não podem servir de óbice ao reconhecimento de direitos erigidos a cláusulas pétreas pelo ordenamento jurídico constitucional. Tais óbices não podem cegar o aplicador da lei ao ponto de desproteger ofendidas como a identificada nestes autos de processo porque a mesma não se dirigiu ao Registro Civil de Pessoas Naturais para, alterando seu assento de nascimento, deixar de se identificar como Alexandre Roberto Kley e tornar-se 'Camille Kley' por exemplo! Além de uma inconstitucionalidade uma injustiça e um dano irreparáveis! 
O apego à formalidades, cada vez mais em desuso no confronto com as garantias que se sobrelevam àquelas, não podem me impedir de assegurar à ora vítima TODAS as proteções e TODAS as garantias esculpidas, com as tintas fortes da dignidade, no quadro maravilhoso da Lei Maria da Penha.

(...)

Diante do exposto acima, tenho com a emérita, preclara e erudita Desembargadora Maria Berenice Dias que transexuais que tenham identidade social com o sexo feminino estão ao abrigo da Lei Maria da Penha. A agressão contra elas no âmbito familiar constitui violência doméstica

Esta magistrada não pode deixar a mulher Alexandre Roberto Kley, desabrigada em seus direitos! Não posso deixá-la à margem da proteção legal já que ela se reconhece, age íntima e socialmente como mulher.”6.

(original sem grifos)


“Todavia, a lei em comento deve ser interpretada de forma extensiva, sob pena de ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana. Assim é que a Lei nº 11.340/06 não visa apenas a proteção à mulher, mas sim à mulher que sofre violência de gênero, e é como gênero feminino que a IMPETRANTE se apresenta social e psicologicamente. Tem-se que a expressão “mulher”, contida na lei em apreço, refere-se tanto ao sexo feminino quanto ao gênero feminino. O primeiro diz respeito às características biológicas do ser humano, dentre as quais _________ não se enquadra, enquanto o segundo se refere à construção social de cada indivíduo, e aqui _________ pode ser considerada mulher.

A IMPETRANTE, apesar de ser biologicamente do sexo masculino e não ter sido submetida à cirurgia de mudança de sexo, apresenta-se social e psicologicamente como mulher, com aparência e traços femininos, o que se pode inferir do documento de identidade acostado às fls. 18, em que consta a fotografia de uma mulher. Acrescenta-se, por oportuno, que ela assina o documento como _________, e não como _________. Ressalte-se, por oportuno, que o reconhecimento da transexualidade prescinde de intervenção cirúrgica para alteração de sexo. Os documentos acostados aos autos, como acima mencionado, deixam claro que a IMPETRANTE pertence ao gênero feminino, ainda que não submetida a cirurgia neste sentido.”7.

(original sem grifos)


Assim, por tratar-se de norma protetiva de gênero e levando em consideração que a vítima pertence ao gênero feminino, pois se comportava socialmente como mulher, bem como a agressão foi praticada por seu companheiro, deve ser reconhecida a qualificadora do feminicídio.


São Paulo, 9 de junho de 2016


Flávio Farinazzo Lorza

Promotor de Justiça


Nathalia Gomes Monteiro

Estagiária do Ministério Público


1 FERNANDES, Valéria Diez Scarance. Lei Maria da Penha: O Processo Penal no Caminho da Efetividade: Abordagem Jurídica e Multidisciplinar (Inclui Lei de Feminicídio). p. 72. São Paulo: Atlas, 2015.

2 CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Sobre o Feminicídio. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. ano 23. n.º 270. maio/2015. Direito Penal em Debate. p. 5. São Paulo: IBCCRIM, 2015.

3 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça – A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. p. 41. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

4 BIANCHINI, Alice; GOMES, Luiz Flávio. Feminicídio: entenda as questões controvertidas da Lei 13.104/2015. Instituto Avante Brasil. 12 de março de 2015. Disponível em: <http://institutoavantebrasil.com.br/feminicidio-entenda-as-questoes-controvertidas-da-lei-13-1042015/>. Acesso em 22 de março de 2016.

5 MELLO, Adriana Ramos. Feminicídio: breves comentários à Lei 13.104/15. JOTA UOL. 04 de agosto de 2015. Disponível em: <http://jota.uol.com.br/feminicidio-breves-comentarios-a-lei-13-10415>. Acesso em 31 de março de 2016.

6 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS. Processo n.º 201103873908. Indiciado: Carlos Eduardo Leão. Vítima: Alexandre Roberto Kley. Juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães. Anápolis. Decisão em 23 de setembro de 2011. Disponível em: <http://www.tjgo.jus.br/decisao/imprimir.php?inoid=2251460>. Acesso em 26 de janeiro de 2016.

7 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Mandado de Segurança. Relatora Desembargadora Ely Amioka. 9ª Câmara de Direito Criminal. Acórdão em 08 de outubro de 2015. Migalhas. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/10/art20151020-09.pdf>. Acesso em 20 de abril de 2016.







EXCELENTÍSSIMA SENHORA DOUTORA JUÍZA DE DIREITO DA

3ª VARA DO JÚRI DA COMARCA DA CAPITAL


IP 0001798-78.2016.8.26.0052 (CI 355/16)




Consta dos inclusos autos de Inquérito Policial que em 9 de fevereiro de 2016, por volta das 14 horas, na rua Puruba, 1059, Chácara Bandeirantes, área do 100° Distrito Policial, neste Município, LUIZ HENRIQUE MARCONDES DOS SANTOS, também conhecido como “Flaquelou”, qualificado a fls. 39/40, 49 e 132/139, com fotografia a fls. 46/47 e 140, por motivo torpe, mediante recurso que dificultou a defesa da ofendida, em contexto de violência doméstica e com emprego de faca, matou sua companheira Michele (nome civil: Miguel do Monte), conforme laudo necroscópico anexo.


Consta, ainda, que depois do crime inicialmente descrito, na rua citada, altura do número 2014, LUIZ HENRIQUE MARCONDES DOS SANTOS, ocultou o cadáver de Michele (nome civil: Miguel do Monte).



Segundo apurado, o denunciado e a vítima eram companheiros há cerca de dez anos e mantinham um relacionamento conturbado. No dia dos crimes, depois de uma discussão com a vítima, o denunciado ficou enraivecido e, tomado por esse sentimento, decidiu vingar-se. Para tanto, investiu contra Michele, estrangulando-a e, em seguida, com uma faca, desferiu golpes em seu pescoço, causando-lhe a morte.


Depois de matar Michele, o denunciado levou o cadáver até um terreno baldio a poucos metros do local e o enterrou, ocultando-o.

O crime foi praticado por motivo torpe, visto que o denunciado o praticou porque vingou-se da raiva que sentiu da vítima.


O denunciado, além disso, agiu de forma surpreendente e inesperada, empregando recurso que dificultou a defesa da vítima, que foi estrangulada e estava desarmada.


O crime, por fim, foi praticado por razões de a vítima ser do sexo feminino, envolvendo violência doméstica e familiar, haja vista que o denunciado conviveu com ela por cerca de 10 anos.


Diante do exposto, denuncio LUIZ HENRIQUE MARCONDES DOS SANTOS como incurso no artigo 121, § 2º, incisos I, IV e VI, § 2°-A, I, e artigo 211, ambos do Código Penal, requerendo que, autuada e recebida esta, seja o denunciado citado para responder à acusação, prosseguindo-se nos demais atos processuais de acordo com o previsto no artigo 406 e seguintes do Código de Processo Penal até a decisão de pronúncia para, ao final, ser julgado e condenado pelo Egrégio Tribunal do Júri.


ROL:


  1. Isadora (José Filgueira Cardozo) – fls. 95/97

  2. Roseli Aparecida dos Santos – fls. 131/133


São Paulo, 9 de junho de 2016

Flávio Farinazzo Lorza

Promotor de Justiça



Nathalia Gomes Monteiro

Estagiária do Ministério Público

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